Revue de la B.P.C. THÈMES V/2002
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CRISE DA LEGALIDADE
(extr.)
par Miguel
Reale (*)
A súbita deposição do trêfego
presidente venezuelano Hugo Chávez por forças militares, seguida de seu
imediato e inesperado retorno ao poder, como exigência do clamor público,
constitui um episódio que deve ficar na História do Direito como uma lição
magnífica de ruptura da legalidade.
A obediência à lei é o supedâneo
primordial da democracia, a qual repousa sobre dois pilares expressamente
proclamados pelo nunca assaz louvado Art. 5º da Constituição de 1988: o de que
“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude
de lei”, e o de que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal”.
Isto quer dizer que, no regime
democrático, só obriga um fim
consagrado por lei, desde que o meio
empregado para estabelecê-la corresponda a processo também previsto em lei. É a
luz desses dois princípios conjugados que podemos compreender o que seja Estado
Democrático de Direito, cuja legitimidade se confunde com a das normas legais
instituídas objetivamente em função dos valores éticos fundamentais, sem os
quais a democracia não subsiste.
A legalidade, por conseguinte, não
se reduz a mero comando expresso pelos “donos do poder”, o que não foi
obedecido pelo Congresso venezuelano ao conferir, servilmente, ao presidente
Chávez “poderes legislativos discricionários” constantes da chamada Lei
Habilitante, fonte primeira de todos os abusos por ele praticados e que importaram na sua
desastrada e transitória destituição.
Estamos, por conseguinte, perante três
ordens de fatos interligados que explicam o que ocorreu na Venezuela: primeiro,
uma incrível abdicação parlamentar a favor de um governante armado de poderes
ilimitados de que iria grotescamente abusar; ao depois, a reação cívico-militar
contra esse lastimável estado de coisas, seguida pela nomeação irregular de um
“presidente provisório”, cuja decisão preliminar foi, inexplicavelmente,
extinguir o Congresso e o Supremo Tribunal de Justiça, sem incontinenti
convocar o eleitorado para novas eleições presidenciais.
Houve, pois, uma série de atos
ilegais, cujo desfecho final foi a volta de Chávez, já agora, ao que parece,
como “presidente arrependido”, disposto a substituir sua “pseudo aventura
bolivariana” por um governo democrático, respeitadas e ouvidas as vozes
políticas divergentes, como é próprio da democracia.
Dir-se-á que a história está cheia
de exemplos de “rupturas da legalidade”,
quando se chega ao ponto extremo de desrespeito à ordem jurídica constituída,
impondo-se a opção por uma nova fase constitucional. Mas, embora tal fato seja
inegável, tudo deve ser feito para salvaguardar a linha de continuidade legal
inerente ao Estado Democrático de Direito.
Lembremos o que ocorreu no Brasil em
1964, quando se tornou manifesto o propósito do presidente João Goulart de
instaurar no País um regime comunista
ou filo-comunista, justificando, desse modo, o processo revolucionário, ou, se
quiserem, contra-revolucionário de seu afastamento.
A meu ver, era legítimo alijar o
chefe de governo de então, e, não me arrependo de, como Secretário de Justiça
do Estado de São Paulo, ter agido nesse sentido. Confesso, todavia, que a implantação de um regime militar,
que iria durar nada menos de vinte anos, estava bem longe de minhas intenções.
Até o último momento, pensei que se iria convocar, em substituição ao
presidente deposto, o presidente da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal
Federal, sendo justo lembrar que era esse também o ponto de vista do governador
Adhemar de Barros, assim como de Juscelino Kubitscheck, Carlos Lacerda e demais
líderes que atuavam no cenário político do País.
Infelizmente,
optou-se por um “sistema militar” mediante a promulgação de um Ato
Institucional que conferia ao Chefe da Nação poderes ditatoriais, muito embora
se declarasse ainda em vigor a Constituição de 1946. O único imperativo
constitucional que até certo ponto se preservou foi o relativo ao Congresso
Nacional, mantido a duras penas, lanhado e suspenso de suas funções, mas
conservado como uma “estaca da democracia”, a qual iria servir de base ao
retorno da legalidade.
Mas não é preciso volver ao passado
para constatar a crise de legalidade por que passa o mundo contemporâneo, a
começar pelo Brasil, (...) O que impressiona na crise do Oriente Médio (...)
Como se vê, se este primeiro século
de um novo milênio parece ter superado definitivamente a era das guerras
tradicionais, não faltam exemplos de graves atentados à legalidade que é o
cerne do Estado de Direito.
27/04/2002
(*)
Président honoraire de l'Association mondiale de philosophie du droit (IVR),
Membre de l'Académie brésilienne des lettres, Secrétaire d'Etat à la justice et
recteur honor.