Revue de la
B.P.C. THÈMES VI/2011
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por Paulo
Ferreira da Cunha
Professor Catedrático da Faculdade de Direito
da Universidade do Porto, Portugal
En l’un, les principes sont palpables, mais éloignés de l’usage commun; de
sorte qu’on a peine à tourner la tête de ce côté-là, manque d’habitude: mais
pour peu qu’on l’y tourne, on voit les principes à plein; et il faudrait avoir
tout à fait l’esprit faux pour mal raisonner sur des principes si gros qu’il
est presque impossible qu’ils échappent.
Pascal, Pensées,
1, 1.
Lean on principles, one day
they'll
end up giving way.
Oscar Wilde
I. princípios jurídicos “esotéricos” ?
Ao falarmos em princípios “esotéricos”
arriscamo-nos a suscitar alguns mal-entendidos, que devem desde já ser
dissipados. Obviamente que não falaremos de um hipotético direito da
astrologia, ou da quiromância, ou mesmo de direito almíquico, hermético,
cabalístico, ou algo afim. Nem sobre essas questões argumentaremos, numa
rigorosa redução eidética e num distante, respeitoso e prudente ignoramus.
Michel Villey, nos seus cadernos póstumos, considerou o direito natural
como algo esotérico, num passo aliás bastante esotérico, ou no mínimo, pleno de
complexidade e – estamos em crer, se a nossa interpretação for correcta –
também de grande profundidade:
«Le
droit naturel n’est pas la philosophie des juristes – seulement les meilleurs
d’entre eux – (le droit naturel inclut du reste le positivisme – et il explique
le succès du positivisme – car de notre point de vue mieux vaut élever le juge
médiocre dans cet excès plus que dans l’autre qui serait contraire: l’arbitraire,
la fantaisie, le rationalisme –). Je ne recommande pas à tous le droit naturel,
mais à ceux-là seulement qui peuvent comprendre. Le droit naturel es
ésotérique»[1].
Claro que falava com a sua proverbial ironia, meio a sério, meio
brincando. Não tão irónico, porém, como quando definiu o jusnaturalismo como
“afecção mental”, utilizando, aliás, uma linguagem da Medicina[2]...
Mas há – e deve haver, que é o mais
interessante de tudo – algum “esoterismo” hoc
sensu no Direito, mesmo num domínio hoje tão comum, tão difundido
(sobretudo com as constituições “principiológicas”[3]), e tão
vital, como é o dos princípios.
Há princípios patentes, evidentes, e
até alguns de tal forma banalizados que, apesar de si mesmos, servem hoje na
prática para provar tudo e o seu contrário: como o da dignidade da pessoa
humana[4] e o da proporcionalidade[5]– que contudo
poderiam encontrar um recorte bem preciso.
Mas há também princípios ocultos,
escondidos, complexos e meandrosos: e alguns ganham em não ser completamente manifestos.
Há princípios (e mais entidades do
mundo jurídico e jurídico-político) que se não podem (e sobretudo se não devem)
passar a escrito e especialmente não se devem positivar em regulamento, lei,
constituição. Não devem, sem embargo, ser olvidados e desaplicados. Antes (pelo
contrário) são de grande relevância e transcendência e deveriam estar sempre
presentes na mente e no coração não só dos juízes como de qualquer aplicador do
direito.
O perigo da positivação destas verdades
grandes é a sua banalização. “Quem sabe não diz, e quem diz não sabe” –
lembremo-nos deste mote.
Não que envolvamos tais princípios em
uma aura metafísica, ou os coloquemos num altar separado do restante direito,
simplesmente positivo. Não se trata, aliás, sequer de nenhuma revivescência do
direito natural sob outra roupagem (o que seria perfeitamente legítimo e quiçá
mesmo positivo).
Aliás, como sublinha com lucidez Paolo
Grossi, nos tempos mais contemporâneos terá sido precisamente alguma
incomodidade face à dimensão metafísica que terá levado grande maioria dos
juristas a não enfileirarem nas explicações jusnaturalistas. Além do mais, como
o insigne autor italiano adverte:
"É ato de coragem a tentativa de
elaborar um discurso crítico sobre estas manifestações começando pelo 'direito
natural' (ou 'lei natural', como se queira), sobretudo porque sobre ele houve,
sobretudo em tempos recentes e ainda atualmente, acres contraposições, marcadas
pela mais dura intolerância, entre aqueles que o consideram elucubração
fantasiosa indigna de um homem de cultura e quem as faz, de outra parte, objeto
de convicções absolutas e por isso de um obséquio intransigente que beira o
fanatismo. Posições, ambas, muito perigosas porque possíveis (se não prováveis)
fontes de posicionamentos acríticos"[6].
Mas
não curemos aqui dessa questão, que nos ocupou por décadas, e para a qual temos
apenas conclusões provisórias e muito matizadas[7]...
Não é também esta tese derivada daquele
receio de trivialização e pavor elitista da vulgarização do uso desses
princípios, no sentido de se vir a tornar corrente e comum o seu conhecimento
teórico. Uma tal situação seria até benéfica para a cultura jurídica e cívica
das gentes. Seria positivo que o esotérico se volvesse em exotérico.
A questão é, na verdade, totalmente
outra.
Tais princípios altos e fundantes
trivializar-se-iam ao positivarem-se porque, a partir desse momento, se
rebaixariam ao nível do formulário e das técnicas pedestres de raciocínio e
argumentação jurídica. Enquanto sem positivação podem ser guiados pelo bom
senso, usados para o que realmente servem, com a positivação poderiam ser
esquartejados em mil requisitos e mil e uma doutrinas desencontradas,
obnubilados pelo tratamento pro domo
e pela cortina de fumo do “metodologismo”, essa doença infantil (ou senil) da
Metodologia, a qual, porém, não é em Direito um assunto trivial nem pouco
polémico[8].
É aquele referido perigo idêntico ao
uso do “direito natural” pelos juristas menos prudentes, menos cultos, menos
sensíveis, menos racionais, enfim, menos preparados e menos juristas. Que
infelizmente estamos fadados a tê-los (não escondamos a cabeça na areia), com o
sistema actual de ensino, pelo menos em muitos países – contos largos...
Note-se o que, neste ponto, é óbvio: a
invocação (e o respeito pelo) do direito natural declinou na razão directa do
triunfo prático, social, institucional (e académico) do positivismo e da
positivação, designadamente da codificação. Quanto mais normas, aparentemente
menos necessidade de princípios – dirá essa mentalidade que para tudo precisa
de invocar uma alínea de um artigo... Quando é precisamente (ou, pelo menos, de
algums forma: porque se não trata de quantidade de princípios, mas da sua
importância e utilização) o contrário: porque só os princípios podem iluminar o
sentido das normas, quantas vezes esparsas, desconexas e até contraditórias.
E o direito natural, embora seja com
eles com frequência identificado (sobretudo numa perspectiva herdeira do
jusracionalismo) é mais que princípios... Mas não é este o lugar, insistamos,
de sondar a essência dessa fantástica construção mental que tantos séculos
serviu de molde para as aspirações de Justiça do Ocidente (ou da Humanidade, se
pensarmos no dharma, no mesaru, na mahat, etc., etc.[9]).
Curioso que o direito natural parece
ressurgir hoje apenas em raríssimos julgados de índole familiar e sucessória
familiar em que falece lei expressa. Por exemplo, num caso de direito de um pai
relativamente um filho menor depois de uma dissolução de uma união de facto, em
que a criança parecia tratada como
simples “propriedade” da mãe solteira dele separada[10]; ou num caso
sobre o reconhecimento do direito (natural) – embora se empregue no processo a
expressão mais inócua “obrigação natural”[11] - de uma filha colocar flores no túmulo da
mãe, comprado por outra filha, que pretendia que a irmã de tal fosse impedida.
O Sumário desta última sentença é deveras interessante:
“I - Constitui um direito de personalidade o
direito a manter uma relação espiritual com os familiares já mortos.
II - Encontra-se a exercer esse direito quem
junto à campa, em recolhimento, rezando ou não rezando, está com o
falecido e coloca um ramo de flores no seu túmulo.
III - A circunstância de haver uma concessão da
sepultura a favor de outra pessoa não é impeditiva deste direito de
personalidade ser exercido do modo atrás referido.
IV - Estando os cemitérios
integrados no domínio público, quem tem a seu favor a concessão da uma
sepultura não pode impedir que outros, nomeadamente os filhos da pessoa aí
sepultada, se aproximem dessa campa”.
Como que recordando que afinal familiar
seria decerto entendido o direito de Antígona contra Creonte, a propósito de
dar sepultura ao irmão dela e seu sobrinho, proverbial exemplo de agraphos nomos ou de agraphoi nomoi[12]. Mas, na
verdade (e recordemos a teoria de Paulo Dourado de Gusmão sobre o direito da
família[13],
e a de Oliveira Ascensão sobre o direito penal, a que prefere, aliás, a
designação de “direito criminal”[14]),
essas questões eram públicas, sem deixarem de ser privatíssimas na sua essência
– desde logo, o sentimento fraterno (no caso, stricto sensu).
Há grandes e mais gerais direitos por
detrás dos direitos, e a esses se chama normalmente princípios. Mas por detrás
de princípios há outros princípios, mais altos ainda, e a esses se chama
normalmente valores[15].
Estes últimos como que são estrelas, que brilham com luz própria.
Mas o que queremos dizer com esses outros princípios
silenciosos? São os que dão sentido, vida, articulação, a muitos princípios
que conhecemos, mas que contudo, se revelados, poderiam dar a maior das
confusões práticas, porque falando a voz de Moisés e não o canto de Aarão,
recordando recente artigo de Tercio Sampaio Forjaz, baseado na ópera filosófica
de Schonberg, Moses ud Aron[16].
Quais serão, pois, tais princípios? –
sempre o fanerismo mediático ou imediatista apontando-nos como que um
metafórico microfone para que façamos a nossa declaração definitiva, e
bombástica.
Como dizê-los (como verbalizá-los ou
declará-los), então, se eles devem permanecer guardados, ínsitos nas nossas
tábuas da lei, para que não adoremos bezerros de oiro? E por alguma razão
Moisés quebrou as tábuas[17]...
Apenas uma pista (embora saibamos que
as pistas mostram e escondem): eles são o lado principial dos valores jurídicos...
A questão pode pôr-se em termos muito
simples: se um grande princípio, desses maiores que os grandes (princípio supremo: mas não confundir com
valor[18]), é
positivado, os normais grandes princípios
farão figura, face a ele, de pequenas normas. E poderão ser levados menos a
sério. Ora, se os direitos têm de ser levados a sério, conforme o apelo de
Dworkin e Gomes Canotilho[19],
a fortiori devem a sério ser levados
os princípios...
Chamamos Princípios supremos aos que estão por detrás, baseiam e por vezes
compatibilizam ou harmonizam princípios aparentemente antagónicos à vista
desarmada.
Não é apenas preciso, por exemplo na
interpretação constitucional (mas não só), ter uma visão epistémica holística[20].
E tal visão, hoje imprescindível, pode dever-se muitos factores. Um deles é o
princípio da unidade da constituição[21] . E um
outro, o da própria unidade do sistema ou da ordem jurídica. Cabe aqui apontar
que também, em certa medida, tal é o “espírito do sistema” de que fala a norma
hermenêutica, por exemplo no Código Civil português, que, como é bem sabido (ao
menos pelos juristas portugueses: que os demais não têm obrigação). Pois assim
reza o Código no seu art. 10.º:
“Na falta de caso análogo, a situação
é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de
legislar dentro do espírito do sistema”.
Num certo sentido, a omnicompreensão
dos princípios todos parece remeter (ou constrói mentalmente) um novo
princípio, um mega princípio. Mas poderá ainda pensar-se numa imensa
coordenação concorde de todos os princípios:
“(...) il faut avoir la vue
bien nette pour voir tous les principes, et ensuite l’esprit juste pour ne pas
raisonner faussement sur les principes connus.”[22].
Vejamos um exemplo. Noutros casos, é
certo, os princípios supremos comportar-se-iam diferentemente no pormenor, mas
cremos que no essencial colocando os mesmos problemas.
Vamos então ao exemplo.
Os direitos sociais ou a apropriação
coletiva de alguns grandes meios de produção são (ou foram) grandes princípios
sociais de algumas constituições. Já a propriedade privada é, para os liberais,
um sagrado direito de índole principial, que na senda de Locke, quando tal era
generalizadamente levado a sério, foi mesmo elevado (muito para além e até
contra a lição de São Tomás de Aquino[23]) a direito
natural (um dos direitos naturais).
A consagração constitucional de uns e
de outros dos princípios é não só possível, como no nosso entender desejável.
Não, como é sabido, para uns ou outros dos princípios serem lidos
unilateralmente (considerando-se os demais e adversos quiçá “normas
constitucionais inconstitucionais”[24]), mas, muito
ao invés, para serem uns com os outros dialecticamente compostos, modelados,
numa síntese propiciada por leituras holísticas das constituições.
Até aqui não parece haver grandes problemas, nem novidades.
Mas não haverá, por detrás de uns e de
outros dos princípios referidos, um desses princípios não escritos, que é o que
dá essa unidade complexa e internamente em tensão a todo paralelogramo de
forças liberal, por um lado, e social(ista), por outro, aqui presente?
É certo que esse princípio dos
princípios pode ser, no final de contas e em última instância, a tríade
valorativa que está no cerne das nossas constituições modernas, e que passa
pelo lema atribuído normalmente à Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e
Fraternidade (este último passível de substituição por solidariedade, justiça,
humanidade, etc.).
Na verdade, se colocarmos como grande
ângulo de visão daqueles princípios supra
referidos não um destes valores juspolíticos, mas os três, como se foram um
único, eles podem funcionar como grande ogiva ou grande pano de fundo,
superando e fazendo entender-se as contradições entre o “próprio” e o “comum”
que decorrem do diverso timbre e raiz de uns e de outros.
Contudo, recuar ou subir a essa tríade
é um procedimento que pode ser usado para qualquer antinomia principial, porque
à luz desses valores, que constituem o magno programa constitucional último e
sintético das constituições modernas (do Estado de Direito democrático, social
e de cultura[25]),
se devem interpretar e mutuamente limitar os conflitos eventuais entre vários
aspectos constitucionais.
A tentação de resolver as antinomias
pela dignidade da pessoa humana ou pelo princípio da proporcionalidade pode ser
grande. E é inegável que em alguns casos será uma ou o outro a mais adequada
forma, em abstracto, de liquidar a questão a contento e com justiça. Mas, como se sabe, um e outro foram perdendo
força persuasiva pelo exagero de invocação, por fas e por nefas, defendendo
Gregos ou Troianos. A perda de capacidade persuasiva na comunidade jurídica
pode, assim, levar a reponderar a invocação desses “argumentos”.
Tem-se abusado da criação mental e inventiva
de princípios, quantas vezes à medida das necessidades do argumentador. Mas,
neste caso, trata-se de um procedimento heurístico, procurando o que se
encontra escondido, o liame invisível, mas real, que leva a que se unam
princípios constitucionais sociais e princípios constitucionais individuais (ou
individualistas), designadamente o super-princípio liberal da propriedade
privada.
Os espectros da proporcionalidade e da
dignidade da pessoa humana, compreensivelmente, não deixam de pairar: pois não
parece evidente que essa mútua modulação principial decorre da necessidade de
isonomia, de equilíbrio, de não exagero, do não fazer pender a balança apenas
para os detentores da propriedade nem pensar em aboli-la (com o perigo de
haver, em contrapartida, formas de “power without property” de muito género[26])?
Não é essa preocupação que estará, grosso
modo, na base da proporcionalidade? E ainda não é porque se venera e
defende a dignidade da pessoa humana, que, no fundo, se acaba por subscrever
(ainda que alguns a não conheçam sequer) aquela bela máxima de Rousseau que não queria, afinal, que nenhum
homem fosse tão rico que pudesse comprar outro homem, nem tão pobre que fosse
susceptível se ser comprado?[27]
Porque comprar-se e vender-se é uma questão de propriedade privada ou falta
dela.
Mas há mais que isso. Podemos divisar,
dando a mesma seiva a tão diferentes flores do pensamento juspolítico, uma
espécie de princípio-sombra, que propicia mesmo a união dos contrários (coincidentia oppositorum) quando isso se
justifica.
É, politicamente, um princípio de moderação. O mundo só vale
pelos extremos, mas acontece que só consegue resistir, durar e perdurar pelos
meios-termos, os meios-tons e alguns inevitáveis compromissos:
«Le monde ne vaut que par les extrêmes et ne dure
que par les moyens. Il ne vaut que par les ultras et ne dure que par les
modérés.»[28].
Mas juridicamente, o que será um tal
princípio? A dificuldade que temos em explicar o que claramente intuímos é já
meia razão para que não seja manejável pelo jurista comum. Tal como o direito
natural (sempre voltamos a este exemplo), ele não é para todos: apenas para “os
que podem compreender”.
Ora não é fácil compreender como possam
unir-se Liberdade e Igualdade. Gregorio Peces-Barba chegou a aproximar a primeira
do liberalismo e a segunda do socialismo[29]. Na verdade,
porém, uma liberdade sem dimensão social e uma igualdade sem dimensão liberdadeira (preferimos dizer assim,
pois "libertária" é outra coisa, e ultimamente passou a ter mesmo
dois sentidos muito diversos: quer o tradicional, anarquista, quer o novo,
neoliberal) redundam em conhecidos reducionismos: neoliberalismo de faca nos
dentes, e colectivismo triturador das Pessoas.
E a ambas (se apenas a si restritas)
falta o Espírito Santo da fraternidade... Também por esta dificuldade é
necessário que se fale atomisticamente dos princípios mais localizados, e mais
manipuláveis pro domo, porque essa é
a forma de acesso mais evidente aos direitos em concreto. Mas depois a questão
tem de ser arbitrada no conflito de princípios ou na colisão de direitos[30].
Porque nada do que é particular (e estes princípios e direitos são, cada um
deles, apenas parte da questão) pode aspirar, por natureza, à generalidade.
A par do princípio político da
moderação, dir-se-ia que há um princípio jurídico de afirmação da Pessoa - pois a Pessoa não é apenas o indivíduo, nem é
o mero número na massa. A Pessoa (até etimologicamente) é já equilíbrio entre
Liberdade e Igualdade, entre o eu e os outros. Contudo, o que se diz da
proporcionalidade e da dignidade se dirá da Pessoa. Aliás a dignidade é
referida nada mais que à Pessoa: "dignidade da pessoa humana".
Não sabemos como se possa transmitir
esse limite e essa força que estão por detrás de grandes princípios como os que
referimos.
É por um lado o limite recíproco do
individual e do social. E é, por outro, ou dito de outro modo, a ideia mais
velha de "sinalagma", que neste plano político acaba sempre por ter o
nome (nem sempre muito propriamente aplicado) de "contrato social".
Se disséssemos numa Constituição,
explicitamente, que a sociedade, a cultura, a economia, se deveriam reger,
pelos limites, pelos equilíbrios ditados pela ideia sinalagmática, em que se
presume que o sócio não alienará jamais quaisquer direitos que permitam ao poder
ou à sociedade que o sufoquem, e em que se parte do princípio que o poder e a
sociedade isso não pedem ao indivíduo, mas lhe exigem contributo efectivo (e
desde logo cidadão) para a obra colectiva, se disséssemos algo assim, por falta
de dialéctica entre os elementos componentes do real (a vida é sempre luta), e
por vacuidade dos termos, não estaríamos, certamente, a dizer o que queríamos.
Apresentar a realidade dos princípios
como antinómica e dialéctica, embora eles sejam, na verdade, complementares uns
dos outros, não só é mais plástico, mais compreensível, como se liga, afinal a
toda a grande lição metodológica fundadora do Direito: a disputa entre duas
partes, com solução por um terceiro independente, uma relação dinâmica,
polémica, retórica, e triangular.
Afanamo-nos a defender esta ou aquela
visão dos princípios e dos direitos. Gostam mais uns deste tipo e outros
daquele. Numa visão mais englobante, vistos em perspectiva, uns e outros
concorrem para que os grandes princípios invisíveis (ou quase) que aos opostos
unem, se actualizem, vivam. E que, em cada momento, ganhe o que tem mais
argumentos? Não. Por isso se inventaram, e muito oportuna e sabiamente, o
círculo mínimo dos direitos fundamentais, a concordância prática, a
interpretação global unitária e conforme à Constituição (com o princípio da
unidade da constituição)[31],
etc.
Um princípio não pode aniquilar o
outro, como um direito não pode triunfar de outro (em geral, e sempre que
possível). É que a antinomia faz parte do jogo do direito, dos princípios e dos
direitos. Como se (relembremos Borges) o jogador que move os jogadores que
cuidam mover sozinhos as suas peças tenha pensado no ballet do xadrez, não tanto para que este ou aquele chegue ao
xeque-mate, mas para que as brancas e as negras se movam, aguerridamente, no
tabuleiro da vida. Como se tudo dependesse disso. E sem saberem que há mãos que
movem mãos, e milhões de tabuleiros paralelamente jogam infinitos mesmos jogos.
Recordemos e degustemos o final do poema de Borges:
(la sentencia es de Omar) de otro tablero
de negras noches y blancos días.
Dios mueve al jugador, y éste, la pieza.
¿Qué Dios detrás de Dios la trama empieza
de polvo
y tiempo y sueño y agonías?[32]
Não se pode dizer ao advogado de uma
das partes que a sua defesa sectária é vital para que, em confronto com a da
outra parte, também de vida ou de morte, o juiz chegue ao apuramento de uma
bissectriz mais de acordo com a razão, a verdade e a justiça. Cada um tem de
julgar que, sendo parcial, é justo. Do mesmo modo, os defensores comuns dos
princípios sociais e os dos princípios liberais deverão decerto julgar que têm
a razão toda do seu lado.
Se nenhum deve desarmar num irenismo
que o dissolvesse, ou num indiferentismo que os levasse à inacção, o certo é
que a alguns é dado observar e quiçá pleitear por cima dessas imediatas
querelas. E quando tudo parece muito a preto e branco, há que introduzir cores
e matizes.
E desvelar uma ponta do véu dos fios
imperceptíveis que unem tudo o que é constitucional, mesmo aparentemente
contraditório. Mas esses princípios devem ficar guardados no sagrado santuário
da República e da sua virtude: o santo dos santos do Bom Senso. A que, como
água lustral, todas as partes e partidos devem ir beber, devotamente, como a
fonte castálica, de tempos em tempos, num ritual de reverência e regeneração.
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© THÈMES, Revue de la
Bibliothèque de philosophie comparée, VI/2011, mise ligne le 11 décembre
2011
[1] VILLEY, Michel — Réflexions sur Ia Philosophie et le
Droit. Les Carnets,
PUP, Paris, 1995, p. 45.
[2] Idem — Jusnaturalisme, essai de définition, in «Revue Interdisciplinaire d’Etudes
Juridiques», n.º 17, 1986.
[3] Um dos
grandes paladinos desse novo constitucionalismo é o emérito catedrático
brasileiro BONAVIDES, Paulo — Curso
de Direito Constitucional, 26.ª ed., São Paulo, Malheiros, 2011.
[4] Abordamos
este princípio sobretudo no nosso Direito
Constitucional Geral, São Paulo, Método, 2007, p. 42, 59, 69, 150 ss., 157,
225.
[5]
Referindo-se a este princípio, o nosso Direito
Constitucional Anotado, Lisboa, Quid Juris, 2008, p. 70 ss..
[6] GROSSI,
Paolo — Primeira Lição sobre o Direito, trad. Port., 1.ª ed., 2.ª tiragem,
Rio de Janeiro / Gen / Forense, 2008, p. 70.
[7] Além de matéria dispersa em manuais e monografias, desse percurso dão
testemunho El Derecho Natural,
Historia e Ideologia, in Las
Razones del Derecho Natural. Perspectivas Teóricas y Metodológicas ante la
Crisis del Positivismo Jurídico, 2.ª ed. corrigida, reestruturada e
ampliada, Buenos Aires, Editorial Ábaco de Rodolfo Depalma, 2008; Entre a Superação do Positivismo e o
Desconforto com o Direito Natural Tradicional, in História do Pensamento
Filosófico Português, dir. de Pedro Calafate, vol. V, tomo 2, Lisboa, Caminho, 2000, p. 58 ss. ; Pensamento
Jurídico Luso-Brasileiro, Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006; Temas e Perfis da Filosofia do Direito Luso-Brasileira,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000; Ponto de Arquimedes. Natureza
Humana, Direito Natural, Direitos Humanos, Coimbra, Almedina, 2001; Um Clássico Contemporâneo do Direito Natural:
Natural Law, de Maritain, in “Revista
da Faculdade de Direito da Universidade do Porto”, III, 2006, pp. 653-660; Direito
Natural, Justiça e Política, org.,
Coimbra, Coimbra Editora, vol. I, 2005; Direito Natural, Religiões e Culturas, org., Coimbra, Coimbra Editora, 2004;
Addison’s Theory of Justice: a New Natural Law, in
“Antígona. Law and Humanities Studies online”, vol. IV, Março 2003; Do
Direito Natural Positivo - Princípios, valores e direito natural nas
constituições e nos códigos civis portugueses e espanhóis, in Estudos em
Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço - Volume II,
Coimbra, Almedina, 2002; Direito Natural e Jusnaturalismo. Teste a alguns
conceitos difusos, Separata da Revista “O Direito”, ano 133.º (2001), n.º II (recebido a 20 de Dez.º
2001); Direito Natural e Teoria da
Justiça. Deontologia, Terminologia e Sistematização, in “Persona y Derecho,
Estudios en Homenaje al Prof. Javier Hervada” (I), vol. 40 – 1999*, pp. 13-52;
We are all Guilty. A
case on Natural Law, International Law and International Politics, in
"Fides. Direito e Humanidades", Porto, Rés, III, 1994, p. 61
ss; natural
Natural Law. Michel Villey, in "Vera Lex - International
Journal of Natural Law and Right", vol. XI, n.º 1, New York, 1991.
[8] SALDANHA, Nelson — Da
Teologia à Metodologia. Secularização e Crise no Pensamento Jurídico, Belo Horizonte, Del Rey, 1993; ATIAS,
Christian — Théorie contre arbitraire, Paris, P.U.F., 1987; FEYERABEND, Paul
– Against Method, edição port. revista, trad. de Miguel Serras
Pereira, Contra o Método, Lisboa,
Relógio D’Água, 1993; MAN, Paul de — The Resistance to Theory, trad. port. de Teresa Louro Pérez, A Resistência à Teoria, Lisboa, Edições
70, 1989.
[9] Cf., v.g., TRUYOL
SERRA, Antonio — Historia da Filosofia do Direito e do Estado, vol. I. Das
Origens à Baixa Idade Média, ed. port., trad. de Henrique Barrilaro Ruas,
Lisboa, Instituto de Novas Profissões, 1985, p. 19 ss. E FERREIRA DA CUNHA,
Paulo / AGUIAR E SILVA, Joana / LEMOS SOARES, António — História do Direito. Do Direito Romano à
Constituição Europeia,
reimp., Coimbra, Almedina, 2010, p. 97 ss.
[10] Cf. Um caso no
Tribunal de “Grande Instance” de Toulouse, in Revue d’Histoire des Facultés de Droit et de Science Politique, n.º
6, Paris, LGDJ, 1988, pp. 158-159, precedido de um certeiro estudo de Jean-Marc
Trigeaud.
[11] Acórdão da Relação
de Coimbra, 377 / 10. 0TBGRD. C1.
[12] GILDA BARROS,
Gilda Naécia — Agraphoi
Nomoi, in “Notandum”, 3, Jan. – Jun. 1999, ed. electr.: http://www.hottopos.com/notand3/agrafoi.htm.
[13] DOURADO DE GUSMÃO,
Paulo — Introdução ao Estudo do Direito, 21.ª ed., revista, com alterações,
Rio de Janeiro, Forense, 1997, p. 190 ss.
[14] OLIVEIRA ASCENSÃO,
José de — O Direito. Introdução e Teoria Geral, 13.ª ed., refundida, Coimbra,
Almedina, 2005, p. 351 ss.
[15] Cf., por todos,
a nossa Filosofia do Direito,
Coimbra, Almedina, 2006, p. 674 ss.
[16] SAMPAIO FERRAZ, Tércio — On Sense and Sensibility in
Legal Interpretation, “Rechtstheorie”, 42, 2, 2011, p. 139 ss.
[17] Cf., v.g., o interessantíssimo ensaio de FREUD,
Sigmund — Moisés e o Monoteísmo, trad. port. de Isabel de Almeida e
Sousa, s/l, 1990.
[18] Valores
começam por ser, em Direito, os constitucionalmente consagrados (e em Espanha
são formalmente constitucionais), como a Liberdade, a Igualdade, a Justiça (e,
mais acima dela, a Fraternidade, e em alternativa a Solidariedade ou mesmo a
Humanidade). Mas estes são só valores jurídicos políticos. Pode pensar-se se
não haverá outros valores, infra-constitucionais, deste tipo, ou seja, que não
sejam mega-princípios, como da culpa, em Direito Penal, ou da liberdade
contratual em Direito Privado.
[19] DWORKIN, Ronald — Taking Rights seriously, London,
Duckworth, 1977; GOMES CANOTILHO, José Joaquim — Tomemos a sério os direitos económicos, sociais e culturais,
separata de Boletim da Faculdade de
Direito de Coimbra , numero especial, "Estudos em Homenagem ao Prof.
Doutor António Arruda Ferrer Correia, 1984“, Coimbra, 1988, hoje in
Estudos sobre Direitos
Fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora, 2004.
[20] De entre multidão
de estudos (nem todos querendo designar o que aqui designamos, cf., v.g., CREMA, Roberto — Introdução à Visão Holística. Breve
Relato de Viagem do Velho ao Novo Paradigma, São Paulo,
Summus, 1989.
[21] Cf. o nosso Direito Constitucional Anotado, p. 57
ss.
[22] PASCAL,
Blaise — Pensées, I, 1.
[23] TOMÁS
DE AQUINO — Summa Theologiae,
IIa IIae, q. 66, art. 2, Resp. 1. Permitimo-nos citar, para comodidade
dos leitores mais modernos, na versão castelhana consultável aliás online (http://sumateologica.files.wordpress.com/2009/09/sumadeteologia3.pdf ):
Respuesta a las
objeciones: 1. A la primera hay que decir: Que la comunidad de los bienes se
atribuye al derecho natural, no porque éste disponga que todas las cosas deban
ser poseídas en común y que nada deba poseerse como propio, sino porque la
distinción de posesiones no es según el derecho natural, sino según la
convención humana, lo cual perteneceal derecho positivo, como se ha expuesto
(q.57 a.2.3).
V. VALLANÇON, François — Domaine et Propriété (Glose sur Saint
Thomas D’Aquin, Somme Theologique IIA
IIAE QU 66 ART 1 et 2), Paris, Université de Droit et Economie et de
Sciences Sociales de Paris (Paris II), 1985.
[24] BACHOF, Otto — Norm.as
Constitucionais Inconstitucionais?, trad. portuguesa de J. M. Cardoso da
Costa, Atlantida, Coimbra, 1977.
[25][25] Cf., v.g., HAEBERLE, Peter — Die
Verfassung des Pluralismus. Studien zur Verfassungstheorie der offenen
Gesellschaft, Koenigstein / Ts, Athenaeum, 1980; Idem — Verfassungslehre als Kulturwissenschaft,
Berlim, Duncker & Humblot, 1998.
[26] Um
problema que adquiriu muitas facetas, proteicas mesmo, desde que foi estudado
pelo clássico livro de BURNHAN, James — The Managerial Revolution, What
is Happening in the World, Nova Iork, John Day, 1941. Até à presente relação (quem sabe se
paradoxalmente invertida) entre os poderes políticos e “os mercados”...
[27] ROUSSEAU,
Jean-Jacques — Du Contrat social,
II, 11.
[28] VALÉRY, Paul —
Cahier B, 1910.
[29] PECES-BARBA,
Gregorio — Los Valores Superiores, Madrid,
Tecnos, 1.ª reimp., 1986.
[30] Cf.,
em geral, o nosso Teoria da Constituição.
Direitos Humanos, Direitos Fundamentais, Lisboa / São Paulo, vol. II, 2000.
[31] HESSE,
Konrad — “A Interpretação Constitucional”, in Temas Fundamentais do Direito Constitucional, textos selecionados e
traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio
Mártires Coelho, São paulo, Saraiva, 2009; LOUREIRO, Maria
Fernanda / CARNEIRO, Maria Francisca — Hermenêutica como Método de Aplicação do Direito Constitucional,
Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editora, 2011. E o nosso Direito Constitucional Anotado, p.
41 ss.;
[32] BORGES,
Jorge Luis — Ajedrez.